segunda-feira, julho 31, 2006
CONTINUAÇÃO - LEIA O INÍCIO DO TEXTO DOIS POSTS ABAIXO
Marlene, viúva e mãe de dois filhos
O mostrador dos batimentos cardíacos é o de cima, em azul. Controlo suas variações mesmo sabendo que nada posso fazer. Geralmente não passa dos setenta e cinco batimentos por minuto, nada alarmante, mas um pouco alto para um senhor de oitenta e seis anos que está em repouso. Os médicos não se assustam, dizem ser natural, o coração é forçado a uma atividade maior por causa da precariedade do funcionamento dos pulmões, o da direita comprometido, o da esquerda agüentando, com a ajuda do oxigênio artificial, o trabalho dos dois. Mas apenas sem nenhum esforço. Ele jamais poderia andar, teria outro AVC. O que me traz a questão elementar, um paradoxo: em coma ele vive, se acordasse e tentasse se mexer para se acomodar melhor na cama morreria em segundos.
Com meu marido foi assim. Morte quase instantânea, jogando tênis contra o Marquinhos, meu filho mais moço. Ataque cardíaco. Foi o tempo de dobrar os joelhos, apoiar a mão esquerda no chão, a direita estava espalmada no coração, e escorar a queda. Nunca mais se levantou. Reconstruo a cena que a boca chorosa de meu filho contou para mim, para os médicos e, por telefone, para Nicolas, seu irmão mais velho, que estava trabalhando quando isso aconteceu, 31 de dezembro de 1989. Fazia o último ano de residência médica no Albert Einstein, o hospital mais badalado de São Paulo. Queria ser cirurgião, terminou como oculista. Nunca mais voltou a morar no Rio.
Quando o Afonso foi enterrado, a família acabou com ele. Um breve suspiro de dois anos, enquanto o Marquinhos ainda estava no segundo grau, mas depois que ele foi para Campinas, engenharia mecatrônica, nos limitamos aos feriados e, mesmo assim, nem todos, apenas os religiosos: Páscoa e Natal. No meu aniversário eles também vinham, mas depois que o Nicolas começou a namorar, e depois casou com a Mônica, que nasceu no mesmo dia que eu, 2 de outubro, fiquei restrita aos feriados, depois apenas ao Natal, os cinco últimos na casa de um dos dois, em São Paulo.
CONTINUA
Marlene, viúva e mãe de dois filhos
O mostrador dos batimentos cardíacos é o de cima, em azul. Controlo suas variações mesmo sabendo que nada posso fazer. Geralmente não passa dos setenta e cinco batimentos por minuto, nada alarmante, mas um pouco alto para um senhor de oitenta e seis anos que está em repouso. Os médicos não se assustam, dizem ser natural, o coração é forçado a uma atividade maior por causa da precariedade do funcionamento dos pulmões, o da direita comprometido, o da esquerda agüentando, com a ajuda do oxigênio artificial, o trabalho dos dois. Mas apenas sem nenhum esforço. Ele jamais poderia andar, teria outro AVC. O que me traz a questão elementar, um paradoxo: em coma ele vive, se acordasse e tentasse se mexer para se acomodar melhor na cama morreria em segundos.
Com meu marido foi assim. Morte quase instantânea, jogando tênis contra o Marquinhos, meu filho mais moço. Ataque cardíaco. Foi o tempo de dobrar os joelhos, apoiar a mão esquerda no chão, a direita estava espalmada no coração, e escorar a queda. Nunca mais se levantou. Reconstruo a cena que a boca chorosa de meu filho contou para mim, para os médicos e, por telefone, para Nicolas, seu irmão mais velho, que estava trabalhando quando isso aconteceu, 31 de dezembro de 1989. Fazia o último ano de residência médica no Albert Einstein, o hospital mais badalado de São Paulo. Queria ser cirurgião, terminou como oculista. Nunca mais voltou a morar no Rio.
Quando o Afonso foi enterrado, a família acabou com ele. Um breve suspiro de dois anos, enquanto o Marquinhos ainda estava no segundo grau, mas depois que ele foi para Campinas, engenharia mecatrônica, nos limitamos aos feriados e, mesmo assim, nem todos, apenas os religiosos: Páscoa e Natal. No meu aniversário eles também vinham, mas depois que o Nicolas começou a namorar, e depois casou com a Mônica, que nasceu no mesmo dia que eu, 2 de outubro, fiquei restrita aos feriados, depois apenas ao Natal, os cinco últimos na casa de um dos dois, em São Paulo.
CONTINUA
sexta-feira, julho 28, 2006
CONTINUAÇÃO - LEIA O INÍCIO DO TEXTO NO POST ABAIXO
Marlene, espírita
Mas tenho medo. Toda noite sonho com meu pai acordando, cutucando meu ombro com seu dedo médio arroxeado e me perguntando por que ele precisa continuar lutando para não morrer. Eu tento dizer que não tenho resposta para isso, mas minha boca parece colada, como que grudada por alguma linha que cerze meus dentes, e não consigo emitir som. Ele então caminha devagar novamente para a cama, pé ante pé, deita, ajeita as cobertas, fecha os olhos e volta a dormir seu sono de oito meses.
Quando acordo sempre procuro por seus apelos negros, fechados. Falta-me coragem de soprar a resposta que sei, ele sabe, nos seus ouvidos. Dizer-lhe que vá, nada o prende deste lado. Mas sempre recuo, jamais passo do sussurro mental. Temo falar em voz alta a verdade, pois em seguida teria que pensar em mim, no que seria de mim depois que ele se fosse, quando não estivesse mais neste hospital, inerte nesta cadeira ou cama.
A situação de um jeito esdrúxulo me é cômoda; o café da manhã pago pela empresa de saúde, o almoço e jantar ao alcance de um elevador, o sofá-cama sempre com lençóis limpos e esterilizados. A semana transcorre de maneira natural, uma sucessão de dias, que no início eu contava pela programação da televisão. Foi perdendo a graça, as novelas não são tão boas como antigamente, as notícias não me interessam mais, os esportes nunca me apeteceram. O próximo passo foi decorar o menu do restaurante do hospital, na segunda-feira frango, na terça peixe, na quarta macarrão, quinta novamente frango e na sexta carne vermelha. Assim sabia sempre o dia da semana, era confortável, previsível e o que preciso neste hospital, na minha vida, é dessa previsibilidade morna, grudenta. Mas um dia veio carne na segunda-feira, macarrão na terça, peixe na quarta e na quinta, e desisti deste método.
Finalmente, o dinheiro. Não conto mais os dias da semana, mas sempre sei quando é sexta-feira: o dinheiro acaba. Assim, encontrei um equilíbrio provisório, pelo menos até o preço das refeições aumentar.
CONTINUA
Marlene, espírita
Mas tenho medo. Toda noite sonho com meu pai acordando, cutucando meu ombro com seu dedo médio arroxeado e me perguntando por que ele precisa continuar lutando para não morrer. Eu tento dizer que não tenho resposta para isso, mas minha boca parece colada, como que grudada por alguma linha que cerze meus dentes, e não consigo emitir som. Ele então caminha devagar novamente para a cama, pé ante pé, deita, ajeita as cobertas, fecha os olhos e volta a dormir seu sono de oito meses.
Quando acordo sempre procuro por seus apelos negros, fechados. Falta-me coragem de soprar a resposta que sei, ele sabe, nos seus ouvidos. Dizer-lhe que vá, nada o prende deste lado. Mas sempre recuo, jamais passo do sussurro mental. Temo falar em voz alta a verdade, pois em seguida teria que pensar em mim, no que seria de mim depois que ele se fosse, quando não estivesse mais neste hospital, inerte nesta cadeira ou cama.
A situação de um jeito esdrúxulo me é cômoda; o café da manhã pago pela empresa de saúde, o almoço e jantar ao alcance de um elevador, o sofá-cama sempre com lençóis limpos e esterilizados. A semana transcorre de maneira natural, uma sucessão de dias, que no início eu contava pela programação da televisão. Foi perdendo a graça, as novelas não são tão boas como antigamente, as notícias não me interessam mais, os esportes nunca me apeteceram. O próximo passo foi decorar o menu do restaurante do hospital, na segunda-feira frango, na terça peixe, na quarta macarrão, quinta novamente frango e na sexta carne vermelha. Assim sabia sempre o dia da semana, era confortável, previsível e o que preciso neste hospital, na minha vida, é dessa previsibilidade morna, grudenta. Mas um dia veio carne na segunda-feira, macarrão na terça, peixe na quarta e na quinta, e desisti deste método.
Finalmente, o dinheiro. Não conto mais os dias da semana, mas sempre sei quando é sexta-feira: o dinheiro acaba. Assim, encontrei um equilíbrio provisório, pelo menos até o preço das refeições aumentar.
CONTINUA
Eu nem choro mais
Marlene, 61 anos
Os lençóis brancos realçam os contornos fracos do corpo dele, as pernas magras, os joelhos alinhados pelas mãos de outros. O peito frágil, escamado, costelas aparentes, não respira por si só, o pulmão não consegue sustentar o natural sobe e desce e o ar entra pela boca, máscara de oxigênio. Os olhos do negro ameaçador que na minha infância tanto temi e admirei foram encobertos por uma névoa branca, constante, e rezo para que as pálpebras estejam abaixadas toda vez que entro no quarto.
Sempre estão.
Seus braços são como galhos mortos, finos, que não conseguem gerar folhas ou frutos, apenas restam colados junto ao corpo, árvore de raiz seca. A pele arroxeada pelas picadas de sangue extirpado e jamais devolvido, as mãos caídas, mero canal de entrada dos remédios que o mantém vivo.
Ele tem 84 anos, meu pai. Estou neste hospital há oito meses, ele sempre deitado, coma induzido, e eu esperando que algo aconteça. E apenas uma coisa pode acontecer. Minha vida é uma eterna espera, e aguardo sentada numa cadeira acolchoada, olhando pela janela - uma vista de prédios e casas velhas, a cidade em ondulações de calor que não passam por essa janela, eternos 22 graus comandados por um controle remoto invisível. De turno em turno uma enfermeira vem e troca o soro dele, de dois em dois dias lhe dão banho e mudam o jogo de cama. Antes eram mais vezes, mas viram que não há necessidade, ele não se mexe, as sondas eliminam as únicas sujeiras possíveis, está mais morto do que se tivesse enterrado, comida de vermes.
Saio apenas para almoçar e jantar, sempre às 12 e 18 horas, retorno em 25 minutos, três a mais nas sextas-feiras quando atravesso a rua para tirar dinheiro do caixa eletrônico. No início era um mantra de vai para casa, dona Marlene, entoado por médicos e enfermeiras, mas com o tempo foram desistindo de falar comigo e passaram a falar sobre mim, cochichos e olhares atravessados enquanto davam banho de gato em meu pai. Nos últimos meses ninguém mais fala comigo e, com isso, nada respondo também. O silêncio sempre me pareceu a condição natural, e se agora posso mantê-lo por dias, semanas, isso não chega a me fazer triste.
Não faço planos. Apenas espero calada que ele morra para que possamos sair deste hospital.
CONTINUA
Marlene, 61 anos
Os lençóis brancos realçam os contornos fracos do corpo dele, as pernas magras, os joelhos alinhados pelas mãos de outros. O peito frágil, escamado, costelas aparentes, não respira por si só, o pulmão não consegue sustentar o natural sobe e desce e o ar entra pela boca, máscara de oxigênio. Os olhos do negro ameaçador que na minha infância tanto temi e admirei foram encobertos por uma névoa branca, constante, e rezo para que as pálpebras estejam abaixadas toda vez que entro no quarto.
Sempre estão.
Seus braços são como galhos mortos, finos, que não conseguem gerar folhas ou frutos, apenas restam colados junto ao corpo, árvore de raiz seca. A pele arroxeada pelas picadas de sangue extirpado e jamais devolvido, as mãos caídas, mero canal de entrada dos remédios que o mantém vivo.
Ele tem 84 anos, meu pai. Estou neste hospital há oito meses, ele sempre deitado, coma induzido, e eu esperando que algo aconteça. E apenas uma coisa pode acontecer. Minha vida é uma eterna espera, e aguardo sentada numa cadeira acolchoada, olhando pela janela - uma vista de prédios e casas velhas, a cidade em ondulações de calor que não passam por essa janela, eternos 22 graus comandados por um controle remoto invisível. De turno em turno uma enfermeira vem e troca o soro dele, de dois em dois dias lhe dão banho e mudam o jogo de cama. Antes eram mais vezes, mas viram que não há necessidade, ele não se mexe, as sondas eliminam as únicas sujeiras possíveis, está mais morto do que se tivesse enterrado, comida de vermes.
Saio apenas para almoçar e jantar, sempre às 12 e 18 horas, retorno em 25 minutos, três a mais nas sextas-feiras quando atravesso a rua para tirar dinheiro do caixa eletrônico. No início era um mantra de vai para casa, dona Marlene, entoado por médicos e enfermeiras, mas com o tempo foram desistindo de falar comigo e passaram a falar sobre mim, cochichos e olhares atravessados enquanto davam banho de gato em meu pai. Nos últimos meses ninguém mais fala comigo e, com isso, nada respondo também. O silêncio sempre me pareceu a condição natural, e se agora posso mantê-lo por dias, semanas, isso não chega a me fazer triste.
Não faço planos. Apenas espero calada que ele morra para que possamos sair deste hospital.
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